O capelão Antônio Gomes da Silva tinha problemas nas pernas, mancava, usava uma bengala para ajudar na locomoção e estava interessado em comprar uma fazenda em Mato Grosso. Foi assim que Roberto Zampieri, um conhecido advogado de Cuiabá, foi apresentado ao seu algoz um mês antes de morrer. Em dezembro do ano passado, ele encerrou o expediente no início da noite, como de costume, fechou o escritório, caminhou até a rua, entrou no carro, mas dessa vez não teve tempo de acionar a partida. O coxo, que já estava de tocaia, se moveu com surpreendente agilidade. Em segundos, aproximou-se, tirou uma arma de dentro de uma caixa de papelão, disparou doze vezes e fugiu — correndo. Com a ajuda de câmeras de segurança, a polícia identificou e prendeu o assassino, na verdade, um pistoleiro de aluguel. O crime parecia esclarecido, mas uma descoberta meses depois provocou uma enorme reviravolta no caso. O advogado morto era membro ativo de uma rede que subornava juízes e desembargadores e negociava decisões judiciais até mesmo no Superior Tribunal de Justiça (STJ), a segunda Corte mais importante do país.
Em sigilo, a Polícia Federal está investigando a venda de sentenças no gabinete de quatro ministros do STJ. A pista que colocou delegados e agentes no rastro do que pode se transformar num escândalo de corrupção em Brasília estava na cena do crime de Cuiabá — um celular caído no chão do carro, próximo ao corpo do advogado. O telefone pertencia a Zampieri. Como manda o protocolo, os peritos lacraram o aparelho. Na tela de início, havia o alerta de 39 mensagens de WhatsApp não lidas. A última delas tinha sido enviada por alguém identificado como “Des Sebastião”. Nada aparentemente relevante. Logo depois, porém, percebeu-se que havia algo estranho. Os familiares do morto tentaram impedir a apreensão do aparelho. Sem sucesso, queriam evitar que os policiais acessassem os dados, argumentando que havia ali segredos profissionais entre advogado e clientes. Juízes e desembargadores de Mato Grosso também se mobilizaram com o mesmo objetivo. Um magistrado chegou a enviar um preposto à delegacia e conseguiu reaver o celular.
O aparelho, de fato, guardava segredos profissionais que explicavam tamanha movimentação. Em busca de alguma informação que pudesse ajudar a elucidar o assassinato, os investigadores encontraram diálogos que versavam sobre compra de sentenças, comprovantes de repasses financeiros a juízes do estado e provas cabais de corrupção em gabinetes do Superior Tribunal de Justiça. Para preservar o material, promotores do Ministério Público de Mato Grosso fizeram uma cópia e a encaminharam ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Os documentos encontrados revelam que decisões dos ministros Isabel Gallotti, Og Fernandes, Nancy Andrighi e Moura Ribeiro eram vendidas. Diante das evidências, o CNJ encaminhou o caso à Polícia Federal e também à presidência do STJ. As investigações estão em andamento, não há qualquer evidência de que os ministros sabiam ou se beneficiaram do esquema, mas não há dúvidas de como ele funcionava. Rascunhos das decisões dos magistrados, as chamadas minutas, eram repassados pelos funcionários do gabinete a lobistas e advogados. Com o material em mãos, o grupo procurava a parte interessada no processo e fazia a oferta. Se a propina fosse paga, a minuta se transformava no veredicto do ministro. Caso contrário, era modificada e beneficiava a parte contrária.
As conversas, os documentos e os comprovantes de pagamento encontrados no celular de Zampieri revelam que o comércio de sentenças operava há pelo menos quatro anos. Em um dos diálogos, um lobista identificado como Andreson Oliveira Gonçalves encaminha a Zampieri a “minuta” de uma decisão que poderia ser tomada por um dos ministros citados em um processo de interesse da quadrilha. Combinado o pagamento, dias depois, veio o veredicto. “Até a vírgula é igual”, comemorou o lobista, ao comparar o rascunho e a decisão final. Semanas depois, o mesmo lobista enviou um áudio ao parceiro em tom ameaçador. O motivo: o pagamento ao servidor do STJ estava atrasado e poderia comprometer a continuidade do esquema. “Zamp, não pode brincar com eles, não. Falou no dia, tem que cumprir”, reclamou. Em uma segunda mensagem, referindo-se a um outro processo em tramitação no STJ, Andreson cobra o pagamento de 50 000 reais ao “amigo” e avisa que em breve estaria no banco para fazer uma transferência que consolidaria a compra de uma nova decisão judicial. O tal amigo é chefe de gabinete de um dos ministros citados. “Nunca falei de ministro do STJ, nem assessor, nem chefe de gabinete de ministro com Zampieri, mesmo porque não os conheço. Se eu conhecesse alguém eu faria uma coisa dessa? Deus me livre”, disse Andreson a VEJA.
Cada ministro do Superior Tribunal de Justiça tem à disposição uma equipe de assessores de gabinete. Cabe a eles, entre outras atividades, preparar as minutas que subsidiam as decisões do magistrado, através da análise de documentos nos autos. Se mal-intencionados, eles podem de fato manipular essas informações e induzirem os magistrados a erro. Por isso, sigilo e confiança são fundamentais nessa relação, mas, ao que parece, ambos foram quebrados. VEJA teve acesso a quatro minutas que foram compartilhadas pela quadrilha. Encontradas no celular do advogado morto, elas estão balizando as investigações da PF sobre a atuação dos funcionários do STJ na venda de decisões. São casos cujos valores ultrapassam 100 milhões de reais. Envolvem o litígio de um grande banco, um antigo magnata do algodão, um recurso “conduzido” para o gabinete de um determinado ministro e até o desfecho sobre uma busca e apreensão no âmbito da Operação Faroeste, que apura a participação de desembargadores do Tribunal de Justiça da Bahia em crimes como corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa. “Esses documentos não deixam sombra de dúvida de que as minutas eram repassadas a terceiros e, depois de negociadas, se transformavam em decisões”, diz uma autoridade com acesso ao caso.
Há cerca de dois meses, depois da notificação do CNJ, os quatro ministros citados nas mensagens foram convocados para uma reunião. Na ocasião, a então presidente do STJ, Maria Thereza de Assis Moura, informou os colegas sobre o caso, ressaltou que a suspeita recaía sobre os assessores e anunciou a abertura de uma investigação interna, que caminharia em paralelo às apurações da PF. Ao ouvirem o relato, dois magistrados, indignados, disseram que colocariam a mão no fogo pela equipe. Os outros dois consideraram a possibilidade de demitir imediatamente os subordinados. Em nota, o STJ confirma que está investigando o caso, mas que não pode adiantar nenhuma informação. “Os fatos narrados pela reportagem já são objeto de investigação administrativa e penal. Tão logo chegaram ao conhecimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), foram instaurados sindicância, já parcialmente concluída, e processo disciplinar (PADs). Além disso, a pedido do STJ, os fatos também se encontram sob apuração da Polícia Federal. Informações complementares não podem, neste momento, ser fornecidas para não prejudicar as diligências em curso.” O CNJ apura o envolvimento de um juiz e já afastou dois desembargadores de Mato Grosso por suspeitas de integrarem o esquema de venda de sentenças, entre eles, Sebastião de Moraes Filho, o “Des Sebastião”, o autor da mensagem enviada para o celular do advogado quando ele já estava morto.
A investigação sobre o comércio de sentenças ganhou recentemente um ingrediente a mais. Em julho passado, o advogado Rodrigo de Alencastro prestou um depoimento em que afirma ter ouvido uma conversa de sua antiga companheira, a também advogada Caroline Azeredo, na qual ela dizia ter em mãos uma lista de processos que seriam julgados em breve pela ministra Nancy Andrighi. O material, segundo ele, seria usado para achacar as partes envolvidas. Um dos alvos seria o presidente da Câmara Legislativa do Distrito Federal, Wellington Luiz, de quem se discutiu cobrar o pagamento de 500 000 reais em troca de uma sentença favorável. Chamado a depor, o deputado confirmou que “chegou a receber recado, por interpostas pessoas, de que uma advogada de nome Caroline Azeredo tinha oferecido seus serviços para influenciar na decisão de um processo em que litiga”. O achaque teria ocorrido em março deste ano. Após rechaçar o pagamento, Wellington disse ter recebido um recado de que “iria se arrepender”. Meses depois, o gabinete da ministra impôs uma derrota ao parlamentar. “Fiquei surpreso porque já havia uma decisão anterior da ministra que me era favorável”, ressaltou o deputado, que está recorrendo da decisão. Vale ressaltar que não há indícios de que Andrighi soubesse da atuação criminosa de alguém de sua equipe nesse caso. A VEJA, Wellington Luiz disse que não sabia quem era Caroline Azeredo e que só tomou conhecimento das acusações que recaem sobre a advogada ao ser convocado pela Polícia Civil para prestar esclarecimentos. “A investigação demonstrará que o inconformismo com o término do nosso relacionamento abusivo levou meu ex-companheiro a registar fatos inverídicos e sem qualquer comprovação, tratando-se de mera vingança pessoal e perseguição renitente na condição de mulher”, disse a advogada, em nota enviada a VEJA.
Para a polícia de Mato Grosso, Roberto Zampieri foi assassinado a mando de um fazendeiro de Mato Grosso que teria um litígio de terras com o advogado. O matador confessou o crime, mas disse que nunca soube quem era o mandante. O Ministério Público ainda investiga se o homicídio tem alguma relação com o esquema de venda de sentenças judiciais. A teoria, embora sem evidências mais concretas, ganhou tração diante de um episódio recente, cheio de semelhanças e coincidências. No início de julho, o ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil no estado, Renato Nery, foi executado com sete tiros em frente a seu escritório em Cuiabá. Antes disso, ele havia denunciado Zampieri por um, até então, suposto envolvimento no esquema de venda de sentenças hoje investigado pela Polícia Federal. “Não podemos descartar nada”, resume uma autoridade com acesso ao inquérito.
(DA REDAÇÃO \\ Guto Gutemberg)
(INF.\FONTE: Laryssa Borges \\ Veja Abril)
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